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O MITO DA MONOGAMIA

    CAP. 1 – MONOGAMIA PARA INICIANTES

                A (tentativa de) monogamia humana pode ser uma invenção relativamente nova na nossa história evolutiva, possivelmente contrariando tendências evolutivas altamente enraizadas em nós. Por isto talvez seja tão difícil ser sustentada.

                Entretanto negamos esta possibilidade e a traição é considerada o pecado capital em um relacionamento. Mesmo quando não descoberta – a culpa pode ser intensa. Até mesmo quando a traição não se efetivou: Jesus frisou que apenas o fato de se desejar outra pessoa já seria uma espécie de adultério, praticado no coração.

                 A ameaça à monogamia não vem tanto do atual esgarçamento dos valores morais, mas de nós mesmos – talvez este enfraquecimento moral apenas seja uma desejável readequação da nossa cultura à nossa biologia?

                Nossa cultura se preocupa com a traição desde há muito. A primeira grande obra da literatura ocidental, “Ilíada”, de Homero, já retrata este drama – no caso, uma traição que pode mesmo ter iniciado uma guerra, a de Tróia! Na “Odisséia”, do mesmo Homero, após o fim da guerra o fantasma da traição ainda é um mote, enquanto Ulisses mata um exército de homens que desejavam cortejar sua Penélope.

                Porém o próprio Ulisses “pulou a cerca”, mas não foi julgado por isto. O padrão duplo de moralidade é antigo – embora tenha bases biológicas também, conforme se verá.

                Outras grandes obras se baseariam no tema da infidelidade, posteriormente: “Anna Karenina”, de Tolstói; “Madame Bovary”, de Flaubert; “O amante de Lady Chatterley”, de Lawrence; “A letra escarlate”, de Hawthorne etc. No Brasil, Nelson Rodrigues explorou bastante o tema.

                No mundo animal, há uma enorme variedade de padrões sexuais. Não há nenhum modelo específico que possa seguir de guia ao ser humano – pois mesmo entre os primatas há diversos padrões de comportamentos extremos entre si.

                Entretanto, o conjunto dos padrões animais fornece um modelo sólido: a monogamia, embora exista, não é a regra. E nós, ao final, somos ainda animais, apesar de todas as camadas de cultura que pairam sobre nós. Além disto, a história humana em si, baseada em estudos antropológicos, também mostrará que a monogamia humana, definitivamente, não é natural.

                Em quase todos os mamíferos – inclusive a maioria dos primatas – não se nota a monogamia – nem mesmo a social (nem os cuidados dos pais com os filhotes). De quatro mil espécies, apenas algumas dezenas aparentemente formam pares fiéis: algumas espécies de morcegos; raposas; alguns camundongos; cotias e pacas; algumas espécies de focas; saguis e micos, entre os primatas – e poucas espécies mais. Necessário apontar que é possível que, nos próximos anos, com mais observações, a lista diminua.

    Mesmo entre insetos, quase todos eles, observa-se que as fêmeas se acasalam com mais de um macho.[1]

                Antes pensava-se que as aves, por outro lado, tendiam à monogamia (e os pais a cuidar dos filhotes). Eventuais traições observadas eram consideradas aberrantes.

    Estudos genéticos recentes tendem a desmoronar este mito. As aves são tão furtivas que enganavam até mesmo os observadores. No filme “A difícil arte de amar” uma esposa queixa-se a seu pai sobre as infidelidades do marido. O pai a aconselha: “Quer monogamia? Case-se com um cisne.” Hoje sabe-se que nem mesmo os cisnes servem mais de exemplo irrepreensível de monogamia.

    Os estudos animais mais antigos sobre a infidelidade eram observacionais e se concentravam nos machos – tomava-se por certo que as fêmeas eram fiéis – talvez por parte de nossa visão mais pura sobre as mulheres? Os estudos genéticos começaram a surpreender os pesquisadores, ao mostrarem o quanto as fêmeas também tendem à infidelidade.

                Darwin aparentemente teve alguns insights sobre o assunto – a infidelidade das fêmeas – porém pode ter evitado intencionalmente se aprofundar no tema, por questões puritanas da época – aliás, ainda hoje o assunto mexe com fortes emoções.

                O primeiro grande biólogo a mexer no vespeiro foi Geoffrey A. Parker, em 1970, ao falar sobre a “competição espermática” – embora, no seu artigo, falasse sobre insetos. Posteriormente suas ideias seriam expandidas, por outros cientistas, para outros animais, até chegarem aos humanos.

                Com a surpreendente descoberta recente de que, mesmo entre as aves aparentemente mais fiéis, as fêmeas, com frequência, tinham filhos que não eram do seu par habitual, foi necessário estabelecer o conceito de “monogamia social”: isto é, uma monogamia aparente, diferente da “monogamia sexual” (isto é, fidelidade real). 

                Sequencialmente, várias espécies aparentemente monógamas foram desmascaradas. Hoje um estudo é considerado surpreendente quando não encontra evidências de traições em uma espécie socialmente monógama. Antigamente um estudo assim não seria aceito por uma revista, pois mostrava o que era o “óbvio”.

                Pela teoria da seleção sexual, os machos tenderiam a buscar várias fêmeas – e estas a serem mais seletivas.

    Em pesquisas, os homens tendem a dizer que já fizeram mais sexo, na vida, do que as mulheres. O que é contraditório, pois, considerando-se apenas as relações heterossexuais, para cada relação soma-se um “ponto” para o grupo dos homens e um para o das mulheres. A média deveria ser igual. Por pressão social, entretanto, os homens tendem a exagerar seus feitos – e, as mulheres, a escondê-los, embora isto venha mudando aceleradamente, com a liberação feminina.

    Esta pressão social talvez não possa ser atribuída (apenas) à cultura humana, ao “machismo”, pois se observou entre muitas espécies animais tanto a tendência do macho ser menos discreto quanto às suas traições quanto a tendência da fêmea de ser dissimulada.

                Porém a verdade é que as fêmeas traem, sejam pássaras ou mulheres. Um estudo antigo, pré-DNA, baseado em grupos sanguíneos, feito na Inglaterra, mostrou que 6% dos filhos não tinham como pai biológico o pai pressuposto.

    Mais de 90% das espécies de aves são socialmente monógamas. Entretanto, o número reconhecido de espécies sexualmente monógamas despenca a cada dia.

    Até mesmo uma espécie de prostituição pode ser observada entre as fêmeas infiéis, trocando sexo por alimento.

                Aves migratórias fêmeas foram capturadas antes de chegarem ao local de acasalamento – pelo menos 25% delas já carregavam esperma. Mesmo as jovens, em seu primeiro ano de acasalamento, várias delas já haviam “perdido a virgindade”.

                Mesmo entre aves políginas (um macho com várias fêmeas), como o melro-de-asa-vermelha, a situação é complexa. Muitos machos dominadores ficariam surpresos se pudessem ver o resultado do exame de DNA dos filhotes de todas as fêmeas que pensava serem “suas”.

                Porém a predisposição para a infidelidade varia entre as espécies de aves. Das mais sorrateiras parecem ser duas espécies de Malurus (spendens e cyaneus), onde mais de 65% dos filhotes não têm como pai verdadeiro o esperado! Entre outras espécies, comumente tem sido encontrada uma taxa de 10 a 40% de pais biológicos inesperados.  

                 Deve ser observado que nem todas as traições são detectadas se o método de pesquisa é o DNA, já que nem toda relação extraconjugal se concretiza em uma fertilização.

                Freud disse que a psicologia feminina era “um continente escuro”. Se vivo e tomasse ciência destes trabalhos recentes, talvez dissesse que a “psicologia” de qualquer fêmea, inclusive das passarinhas, é este mistério impenetrável…


    [1] E por isto deram erradas as tentativas de se acabar com pragas esterilizando alguns machos. Uma raríssima exceção é mosca-varejeira Cochliomyia hominivorax, cuja fêmea é monógama.