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O CÉREBRO, A MENTE, A ALMA E O ESPÍRITO

    Leia antes: A RELAÇÃO MENTE – CÉREBRO – uma breve história da Neuropsicologia.

            É antiga a crença que mente e cérebro seriam entidades independentes. Até mesmo correntes atuais e influentes da Psicologia defendem esta tese.

            Contudo, hoje a maior parte da comunidade científica não acredita nisto. Adota-se atualmente o conceito de que, de um modo geral, cada estado mental possui um correspondente específico cerebral. Isto quer dizer que, se a pessoa está feliz, em seu cérebro estão ativas determinadas áreas. Se está concentrada em seu trabalho, outras áreas estão mais ativas. Se está lembrando de algo ocorrido há alguns dias, novamente há mudanças no funcionamento cerebral. Se está dormindo e sonhando, mais uma vez outras áreas estão ativadas. E assim por diante. 

    Moderna é a aceitação desta idéia, por ser baseada em fatos científicos, mas ela, em si, já existe há bastante tempo.

            Há alguns séculos, por exemplo, o filósofo francês Montaigne (1533 –1592) já afirmava que “é provável que a alma aloje-se no cérebro, pois os ferimentos e acidentes que afetam esse órgão repercutem de imediato nas suas faculdades”. Assim, acreditava que, com a morte do corpo, a alma também se extinguiria.

            Obviamente, idéias como esta sempre foram combatidas por algumas religiões, pois significariam, se aceitas, a possibilidade do fim de uma moral baseada no julgamento após a morte. O argumento religioso era o seguinte: o cérebro seria apenas o órgão necessário para manter o homem vivo e mentalmente íntegro, e desta forma manifestar no mundo material a sua alma imortal. A bem da verdade, esta idéia religiosa não tem bem como ser refutada, pois hoje poderia ser dito que mesmo que o cérebro tenha várias funções ligadas a cada área, este funcionamento é necessário para a manifestação da alma. Contudo, esta idéia tampouco pode ser comprovada, pois  a “alma” é, por definição, invisível, impalpável. Assim, aceitar ou não tal argumento transcende os aspectos racionais e baseia-se na fé.

            Assim, a questão da imortalidade foi sendo aos poucos abandonada, no ambiente científico (sem, entretanto, ter sido resolvida). Mesmo admitindo-se que a alma necessita do cérebro sadio apenas para manifestar-se plenamente, era inegável que lesões neste órgão manifestam-se no comportamento humano.

    O cérebro passou então a ser aceito como um quebra-cabeças, onde cada peça corresponderia a determinada função da personalidade. Surge então a ciência que tenta mapear estas correlações cérebro-mente: a neuroanatomia funcional.

            Esta ciência conseguiu, a princípio, fazer uma razoável correlação entre regiões cerebrais e respectivos correspondentes mentais. Porém, esta correlação estava longe de ser completa. Notava-se, por exemplo, que para os transtornos mentais que não tinham uma causa física identificável (as depressões, por exemplo), não se observavam nas análises cerebrais, a olho nu, diferenças significativas entre os cérebros destas pessoas e o das pessoas saudáveis. (Além do quê, este conhecimento anatômico obtido até então era de pouca utilidade na prática, visto que não oferecia novas formas de tratamento eficazes para as doenças mentais.)

            Uma grande revolução se dá com o surgimento dos psicofármacos, na segunda metade do século XX. Os primeiros foram descobertos por acaso, sendo testados para outras doenças, mas o seu surgimento fez notar que agiam bem para determinados tipos de doenças mentais, e não para outras. Já existiam as classificações das doenças mentais, e a observação que determinados remédios agiam apenas para cada tipo de doença fez aumentar a curiosidade sobre o que diferenciaria uma doença da outra, em termos cerebrais. Se o cérebro de um esquizofrênico mal se diferenciava de um deprimido, onde estariam então as diferenças? A pesquisa, sendo assim, abandonou o visível e focou para a microscopia, para a química.

            Em algumas décadas o salto no conhecimento foi enorme. Ainda existe a busca por uma correlação completa entre doenças e alterações bioquímicas cerebrais. Porém o conhecimento existente já permite a pesquisa de medicações específicas a cada doença. Citando os exemplos mais clássicos, hoje sabe-se que na depressão uma das principais alterações seria a queda da substância serotonina em algumas regiões do cérebro, enquanto que na fase inicial da esquizofrenia o que há é um aumento de dopamina em outras áreas. 

            A Psiquiatria moderna surge com o aparecimento dos medicamentos. Antes, era uma ciência mais descritiva e, quanto aos tratamentos, mais especulativa que curativa.

            A Psicologia, por seu lado, já se desenvolve desde o início do século XX, especialmente com as idéias de Freud e a Psicanálise. Porém notava-se que as técnicas desta pouco serviam para as doenças mais graves, que a utilidade da Psicologia se dava para as pessoas situadas “entre a sanidade mental e a doença psiquiátrica”.

    Assim, houve uma bifurcação que hoje ainda permanece, de maneira geral. A Psicologia se ocuparia dos casos “mais leves”, buscando a cura através de técnicas psicológicas. A Psiquiatria, dos casos mais graves, tratando-os com os medicamentos. Seria simples, se assim simples fosse na prática. Porém o que nota-se é que: 1) mesmo os casos mais graves podem obter algum auxílio com a Psicologia; 2) mesmo os casos mais leves podem obter algum auxílio com a Psiquiatria.

            Contudo, como vimos, enquanto que a Psiquiatria se ocupou do estudo científico da estrutura do cérebro, a Psicologia não, porque supunha-se que isto pouco influenciaria seu trabalho. O que ocorreu, então, foi que o psiquiatra foi tendo uma noção clara de que seu trabalho se dava em um nível físico, em um local concreto, o cérebro. Já o psicólogo tinha a idéia de trabalhar em um campo mais abstrato, a mente, o espírito, o emocional, a personalidade, o comportamento, ou qualquer outro nome que se empregue.

            O psiquiatra passou a “achar que tudo era cérebro”, o psicólogo “esqueceu que o cérebro existia”.

            Esta visão foi prejudicial não apenas para os dois, psiquiatra e psicólogo, mas especialmente para os pacientes. Na prática, não há uma distinção clara do que seria um paciente puramente psiquiátrico e um paciente exclusivamente para o psicólogo. Boa parte dos casos seria bem mais conduzida se estivesse na mão de um, e não de outro, e outra boa parte se estivesse nas mãos dos dois. Enquanto a Psiquiatria se mantém afastada da Psicologia, ela perde. O mesmo acontece quando a Psicologia se afasta dos conhecimento psiquiátrico. E, como dissemos, este se baseia no estudo do funcionamento do cérebro.

            Dissemos que através de pesquisas foi encontrada a correlação relativamente evidente entre estados doentios e alterações bioquímicas cerebrais. Porém poucos estudos foram feitos para os casos em que o indivíduo não está nem gravemente enfermo nem completamente são. Até mesmo porque para eles já existia a Psicologia, com seus eficientes, em geral,   tratamentos. Sabemos que na “depressão psiquiátrica”, biológica, sem um fato estressor causador evidente na vida do paciente, encontraremos uma deficiência de serotonina. Mas e na tristeza motivada, de curta duração? Sabemos das alterações do transtorno do pânico. Mas o que sabemos dos estados tensionais leves, transitórios? Ainda é pouco.

                Porém a escassez destas pesquisas não quer dizer que o estudo das relações cérebro-mente não exista para os casos que habitualmente são manejados pela Psicologia, e até mesmo para o sujeito considerado “normal”, ou mentalmente saudável. Os estudos de neuroimagem chegaram, hoje, ao indivíduo saudável. É possível ver quais áreas do seu cérebro estão ativas nas mais diversas situações corriqueiras: quando lembra-se de algo, quando mente, quando sente um sabor, quando está alegre, quando faz contas etc.

              Porém, temos falado até agora apenas de como o exterior afeta o cérebro, seja através de lesões advindas de um traumatismo, seja através de técnicas psicológicas ou mesmo de “simples” fatos da vida mental. Mas não falamos de como o cérebro, por si só, toma caminhos doentios ou saudáveis.

            O cérebro, além de existir, é um “ser vivo”. É inegável que cada ser humano nasce, cresce, envelhece, morre. É um caminho que nunca pode ser parado ou revertido. Está programado geneticamente. Isto é ser humano. Porém a carga genética de cada um de nós é diferente. Nascemos diferentes por fora e por dentro (cada um de nós possui um diferente código genético). E cada um de nós terá um desenvolvimento específico. Uns viverão naturalmente até os 50 e, apesar de caminharem diariamente e nunca terem fumado, terão um infarto fulminante. Outros terão uma vida sedentária, alimentar-se-ão constantemente de gorduras e viverão até os 80. Outros terão um câncer aos 20 anos. A composição genética de cada um determina eventos como este. Porém estranha-se: se é genético, porque não tinha o câncer desde quando nasceu, e só apareceu 20 anos depois? Como dissemos, a genética é uma programação, como um livro que é lido aos poucos, no decorrer de nossas vidas. Não nascemos velhos, mas estamos programados para envelhecer. Assim como o câncer estava programado para aparecer aos 20 anos naquela pessoa. Assim como a depressão biológica estava relativamente programada para tal idade. Assim como para outra pessoa estava destinada uma predisposição à esquizofrenia.

            O corpo todo segue um destino, e o resultado em nossas vidas é a soma do caminho próprio dele com o que fazemos com ele. O cérebro, sendo parte desta estrutura, também tem seu caminho e sua programação. Em algumas doenças mentais já foram descobertos os principais genes envolvidos. Estas alterações genéticas manifestam-se em certas épocas com o aumento ou a diminuição de algumas substâncias cerebrais, levando às doenças mentais. 

            Em muitas pessoas a genética para determinado transtorno “é forte”, ou seja, talvez possuam vários dos genes que levam a um transtorno mental, e mesmo que a pessoa viva em um ambiente tranqüilo, pacífico, terá determinada doença. Outra pessoa pode ter pouca ou nenhuma carga genética, mas sofrendo bastante pressão psicológica, desenvolve o mesmo quadro.

            Ou seja, o cérebro é um órgão que recebe, sim, influências do meio que o circunda, mas que também tem sua estrutura e seu destino próprios.

            Assim, a tendência é que cheguemos a um ponto de convergência: não existirão mais duas categorias distintas e intocáveis: a mente e o cérebro. Existirão as duas categorias, sim, mas totalmente interligadas. O cérebro é campo para intervenções psicológicas ou medicamentosas. Independentemente da etiologia, causa, do transtorno mental, serão notadas modificações no cérebro.

            Por exemplo, uma pesquisa observou, através de modernas técnicas de exame cerebral, que as alterações notadas em casos de depressão e que eram corrigidas com antidepressivos eram do mesmo modo revertidas pela psicanálise. Outro estudo observou que o tratamento medicamentoso agia de forma semelhante à terapia cognitiva-comportamental no transtorno do pânico, quando se observavam determinadas áreas cerebrais nestes exames. O mesmo foi observado no tratamento do transtorno obsessivo-compulsivo.

            Fármacos e terapia passam a ser vistos, então, como diferentes mecanismos, instrumentos, para corrigir as duas alterações: tanto as mentais como as biológicas. O que importa-nos, hoje, é descobrir, para cada doença, qual destas duas técnicas é a melhor. O que os estudos mostram é que, para a maioria dos transtornos, o que produz mais resultados é a associação de ambas.

            Restam discussões válidas: se a etiologia da doença em um caso for psicológica, o uso de medicamentos não privaria o paciente de aprender com este transtorno, de aprender a resolvê-lo? Se a etiologia, em outra pessoa, é biológica, qual seria a utilidade da psicoterapia?

            De qualquer forma, é raro o transtorno mental 100% biológico. Os principais estudos para determinar a importância da genética em cada distúrbio são os feitos com gêmeos monozigóticos (idênticos). Estes gêmeos apresentam o mesmo DNA, a mesma carga genética. Se uma doença fosse totalmente genética, deveria, portanto, manifestar-se sempre nos dois. Mesmo em  doenças de alta carga genética, como a esquizofrenia, isto não ocorre. Ou seja, além dos genes alguma coisa do meio influi no surgimento da doença. Por outro lado, também não existe transtorno 100% “psicológico” – pessoas diferentes passando pela mesma situação estressante terão reações diferentes, e isto depende em boa parte dos seus genes, pois estes determinarão algumas características de suas personalidades. Ou seja, para se ter um problema psicológico é necessária a predisposição.

            Qualquer transtorno é, portanto, a soma de uma influência maior ou menor, mas sempre existente, de biologia e meio.

    Finalizando, o que qualquer profissional da área de saúde mental não deve perder de vista, então, é esta estrada de mão dupla: do cérebro à mente e vice-versa. Baseado na ciência, considerar os dois não como coisas diferentes, mas como diferentes manifestações da mesma coisa. Um par feito de concreto e de abstrato, mas com um sempre espelhando e espelhando-se no outro.

    Em resumo, o que a maioria dos pensadores acredita hoje, respondendo às 5 questões, é que:

    • há, sim, uma correlação estreita entre cérebro e mente;
    • cada área cerebral é responsável por determinada função, e embora um mapa completo do cérebro não tenha sido estabelecido, caminha-se para isto;
    • a Neuropsiquiatria ocupa-se do esclarecimento do funcionamento cerebral;
    • enquanto a Psicologia se debruça sobre o funcionamento mental;
    • mas as duas áreas devem andar,  quase sempre, juntas.