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A RELAÇÃO MENTE – CÉREBRO

    Uma breve história da Neuropsicofarmacologia – e como esta história foi nos ensinando sobre as relações entre a mente e o cérebro…


    A humanidade sempre teve que lidar com pessoas que padecem de algum sofrimento mental, como se deduz dos mitos gregos ou de algumas histórias bíblicas.

    Uma questão que há muitos séculos intriga o ser humano são as relações entre a mente (ou o “espírito”, “alma”) e o cérebro.

    Há, na verdade, ao menos 5 grandes questões:

    1. há relação entre mente e corpo (cérebro)?
    2. se há, quais áreas cerebrais se relacionam com quais funções mentais?
    3. como funciona o cérebro?
    4. como funciona a mente?
    5. é o cérebro que “manda” no comportamento ou são as influências do meio?

    Nas civilizações mais antigas, a loucura era atribuída a forças divinas. Em algumas tribos se considerava o louco como alguém com poderes especiais. Mas já foram encontrados crânios datados de cerca de 5000 anos a.C. (antes de Cristo) com perfurações (chamadas “trepanações”), feitas com o objetivo “liberar os maus espíritos” – ou seja, já se supunha algum envolvimento do cérebro com transtornos mentais. Porém nem sempre se chegava a esta “cirurgia”: muitos rituais foram desenvolvidos como tentativas de tratamento.

            Entretanto, muitas culturas não acreditavam que os males que hoje chamamos de mentais se localizassem na “cabeça” ou, mais especificamente, no cérebro. Os egípcios, por exemplo, preocupavam-se em embalsamar o coração e o fígado, e o cérebro era simplesmente removido (embora exista um papiro egípcio de mais de 3000 anos que proponha um “mapa cerebral”). Na cultura grega também o coração era muito valorizado. Provavelmente porque emoções intensas se manifestem com aceleração dos batimentos cardíacos (taquicardia), “aperto no peito”, falta de ar (dispnéia) – efeito que hoje compreendemos como conseqüentes da liberação, por parte de uma glândula localizada logo acima dos rins (supra-renais), de hormônios (adrenalina), na vivência de uma situação emocionalmente importante, após a glândula receber um estímulo de nervos provenientes diretamente do cérebro (apesar de todos estes conhecimentos, até hoje, na cultura popular, o coração é considerado “a sede das emoções”). Para o filósofo grego Aristóteles (384 – 322 a.C.), o movimento do coração correspondia à força vital (já que sua lesão significaria morte imediata) e no fígado residiria a “alma”.

            Mas já nesta época, ou mesmo um pouco antes, outros importantes filósofos, como seus compatriotas Pitágoras (570 – 496 a.C.), Hipócrates (460 – 370 a.C.) e Platão (427 – 347 a.C.), viam o cérebro como uma parte nobre do corpo. Mesmo assim, não havia uma crença de que o cérebro fosse a única origem e localização de todos os comportamentos e emoções. Platão, por exemplo, dividia a alma em três partes: paixões “inferiores” (luxúria, ganância) ligadas ao fígado, qualidades “elevadas” (coragem, orgulho, ou mesmo medo e raiva) ligadas ao coração e, por fim, o cérebro respondia somente pela razão. Ele também acreditava na “alma imortal”. Boa parte das religiões defende, até hoje, a existência de uma alma que independe do corpo, e que sobrevive à morte deste.

            Outros pensadores antigos acreditavam que o organismo seria composto de quatro “humores” (sangue, bile, bile negra e fleugma) e que, havendo desequilíbrio em algum deles, surgiriam diferentes doenças. A preponderância de cada um destes também ditava a personalidade do indivíduo. Começam a surgir, nesta época, as primeiras descrições e classificações de doenças.

    Galeno (cerca de 130 – 200 d.C.) foi um dos primeiros a investigar o cérebro em profundidade. Percebendo, por exemplo, que vítimas de “derrame” (acidente vascular cerebral) perdiam a capacidade de percepção mesmo com os órgãos sensoriais intactos (exemplo: perder o tato), inferiu que o cérebro era essencial para as percepções. Também fez experiências com animais vivos. No cérebro há pequenos espaços ocupados por líquidos e ar (os ventrículos cerebrais). Ele acreditou que este conteúdo era o “pneuma”, o “sopro invisível proveniente do Cosmos”, mediador entre o corpo e a alma.

                Os tratamentos propostos na época são variados (e pouco efetivos): dietas, banhos de ervas, caminhadas, sangrias, etc.

            Na Idade Média se acreditou que o conteúdo dos ventrículos, ao circular pelo cérebro, alterava suas manifestações. Foi uma das primeiras tentativas de explicação para o funcionamento cerebral. Apesar disto, na verdade a Idade Média significou um retrocesso científico, quando trouxe de volta ao continente europeu o pensamento que ligava doenças mentais à religião (ou à falta desta…). Considera-se, muitas vezes, o enlouquecido como pecador, e muitos foram para a fogueira, na época mais bárbara da Inquisição.

            Porém, cumpre esclarecer que entre os árabes, nesta mesma época, o tratamento era humanista. (Maomé, no Corão, declara que os loucos são veneráveis, pois Alá lhes tirou o juízo para que não pequem.)

            O Renascimento trouxe de volta a ciência ao mundo europeu. O gênio Da Vinci (1452 – 1519) fez desenhos bastante realistas de cortes do cérebro. O anatomista Andreas Vesalius (1514 – 1564) dissecava cadáveres, expondo o cérebro, em público. Apesar do progresso, os pacientes mais perigosos passam a ser isolados. (Foi apenas no século XVIII que Pinel, francês, propõe um tratamento mais humano a estes pacientes.)

            Mesmo neste ambiente progressista, o importante  filósofo francês Descartes (1569 – 1650) defendia a antiga idéia de que o funcionamento da mente não dependia do cérebro. Mais claramente, dizia, na verdade, que uma pequena parte do cérebro servia como uma espécie de contato entre a alma e o corpo.

            Indo além da antiga discussão sobre a relação ou não entre mente e cérebro, aprofundou-se, no meio científico, a indagação sobre a correlação entre as áreas cerebrais e determinadas funções mentais. Thomas Willis (1621 – 1675), inglês, foi um dos pioneiros nesta área. Acreditava, por exemplo, que as curvas do córtex (a camada mais externa do cérebro) armazenariam a memória e o centro branco, em seu interior, a “imaginação”.

            Emanuel Swedenborg (1688 – 1772), sueco, postulou que diferentes áreas do córtex deveriam ter diferentes funções porque nosso pensamento varia constantemente.

    O estudo do funcionamento do cérebro também começou a progredir. Luigi Galvani (1737 – 1798), italiano, descobriu, com experimentos, que a estimulação de determinados nervos com eletricidade provocava a contração muscular. O fisiologista alemão Emil Du Bois-Reymond descobriu que o impulso nervoso também poderia ser provocado por estimulação química. No século XIX os microscópios foram aprimorados. O espanhol Santiago Ramón y Cajal (1852 – 1934) notou que em determinadas regiões cerebrais de diferentes cérebros sempre apareciam determinados agrupamentos. Também descobriu que havia uma separação entre um neurônio e outro. Foi agraciado com o prêmio Nobel por seus trabalhos. O britânico Charles Sherrington foi quem chamou este espaço entre os neurônios, por onde eles se “comunicam”, de “sinapse”. Foi importante por ser o primeiro a demonstrar que também haviam neurônios com potencial para inibir outros neurônios. O alemão Otto Deiters distinguiu os dendritos (partes do neurônio que recebem os estímulos nervosos) dos axônios (partes finais, que enviam o estímulo ao neurônio seguinte). Outro alemão, Otto Loewi (1873 – 1961), provou que os nervos, ao serem estimulados, liberam substâncias, que fazem então a comunicação de um neurônio a outro (substâncias chamadas, posteriormente, de neurotransmissores). As idéias de potencial elétrico e liberação de substâncias não foram plenamente aceitas a princípio, até que passaram por confirmação através de vários outros pesquisadores.

    A história do mapeamentocerebral também continuava. Franz Gall, há cerca de 200 anos, fundou a “Frenologia”, que relacionava de modo empírico as protuberâncias cranianas com áreas e capacidades cerebrais.

    Os primeiros mapas cerebrais baseados em experiências remontam aos alemães Eduard Hitzig e Theodor Fritsch, que, no século XIX, estimularam diversas áreas do córtex de gatos, observando quais grupos musculares então se contraíam.

            O francês Paul Broca (1824 – 1880) confirmou observações prévias de que a lesão em determinada área levavam à afasia (perda da fala). Até hoje esta área é conhecida como “área de Broca”. Carl Wernicke também relatou outra área ligada à linguagem, que também ainda recebe seu nome, e cuja lesão compromete a compreensão da linguagem recebida.

            O neurocirurgião Wilder Peinfield, já no século XX, estimulava áreas em cérebros de humanos que seriam submetidos a cirurgias, e conseguiu mapear outras áreas responsáveis por sensações. Alguns pacientes relatavam memórias vívidas da infância, ao estímulo. O neurologista americano foi, porém, contra a corrente dominante à época, ao afirmar que as funções cognitivas superiores dependiam da ação conjunta de várias áreas, e não de grupos bem localizados.

            O estudo dos comportamentos, das emoções, enfim, do funcionamento da mente, também tem uma grande história. No século XIX o fisiologista alemão Wilhelm Wundt começou a desenvolver uma teoria científica da mente. Até então, predominavam idéias metafísicas, que falavam de algo não palpável, a “alma”.

            Mas os primeiros estudos, como os do psicólogo americanos William James, focavam mais nos comportamentos observáveis que nos processos psíquicos. A escola comportamentalista (behaviorista), daí derivada, ainda tem grande influência na Psicologia.

    É desnecessário termos que apontar a importância de Freud, o maior nome na história do estudo dos processos mentais, e o pai da Psicanálise – renovada algumas décadas depois pelo francês Jacques Lacan (1901 – 1981). 

    Na década de 40, a recém-criada “Cibernética” (pelo americano Norbert Wiener) foi aplicada também como base para um modelo do funcionamento cerebral – o cérebro teria uma lógica semelhante à dos computadores. Uma das idéias mais interessantes surgidas foi que, se o funcionamento cerebral não dependesse da sua estrutura, mas sim das conexões entre diferentes partes, um computador que reproduzisse todas estas conexões alcançaria a inteligência humana.

    Os psicofármacos, que começaram a surgir na década de 50, ampliaram o entendimento sobre as alterações que ocorriam em cada doença, visto que cada medicamento funcionava para determinado tipo de transtorno. 

            Hoje modernas técnicas de imageamento cerebral permitem que o mapeamento das correlações entre estruturas e funções seja cada vez mais aprofundado.


    Para uma discussão atual sobre as relações entre a mente e o cérebro, leia: O CÉREBRO, A MENTE, A ALMA E O ESPÍRITO.