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A DIFERENÇA ENTRE GOSTAR E QUERER

    [resumo do capítulo 6 do livro “Emocional – A nova neurociência dos afetos”, de Leonard Mlodinow]

    O transtorno chamado “picacismo” foi descrito em um livro de Medicina em 1563. O nome vem da palavra grega para “pega” (urubu). O distúrbio consiste em comer compulsivamente coisas que não são alimentos.
    Um dos casos mais famosos foi o Michel Lotito, que, de pedacinho em pedacinho, comeu bicicletas, carrinhos de compra e até um belo pedaço de um avião. Lotito morreu em 2007, aos 57 anos, supostamente de causas naturais.

    *

    Por que fazemos o que fazemos?
    Algumas de nossas motivações, como comer, são biológicas; outras, como buscar o sucesso, são sociais – e influenciadas pelas emoções.
    Aliás, “emoção” e “movimento” têm a mesma raiz latina: “movere”.
    Entretanto, a sede da motivação, no cérebro, não se origina das mesmas redes diretamente ligadas à emoção, e sim do chamado “sistema de recompensa”.

    Nosso sistema de recompensa, ao contrário do de animais mais simples, é matizado pela razão, de modo que frequentemente podemos computar qual ação será mais adequada a cada momento.

    O primeiro grande salto no entendimento da motivação veio na década de 1950 e começou a sepultar a “teoria da pulsão”.

    *

    Robert G. Heath, psiquiatra americano (1915 – 1999), ao longo de sua carreira escreveu mais de 400 artigos científicos. Alguns o tornariam famoso; outros, infame.
    Em 1948, Heath assumiu a liderança de um grupo de pesquisa sobre a lobotomia. Hoje sabe-se que não apenas o córtex-frontal é responsável por pensamentos “elevados”, mas que áreas como o córtex órbito-frontal estão envolvidas na consciência das emoções.
    Estudiosos já haviam notado que remover o lobo frontal de chimpanzés os deixava mais calmos. António Egas Moniz notou o mesmo efeito em soldados feridos nesta região, na guerra. E, assim, inventou a lobotomia, em 1935 – e 14 anos depois, recebeu o Prêmio Nobel.
    Heath era um entusiasta na nova Psiquiatria Biológica, que acreditava que as doenças tinham um substrato cerebral, e não que fossem causadas por traumas psicológicos.
    A lobotomia, apesar de acalmar pacientes agitados ou agressivos, os deixava emocionalmente embotados – ou seja, não curava a doença subjacente.
    Heath acreditava que a origem das doenças deveria estar em alguma área profunda do cérebro. Estudos em gatos já mostravam alguma correlação entre estruturas profundas e as emoções.
    Realizar uma cirurgia profunda seria inviável – mas na década de 1930 já havia sido inventado um método para “cauterizar” pequenas áreas cerebrais de forma pouco invasiva.
    Heath começou a realizar experimentos em animais – porque os colegas não apoiariam os testes em humanos.
    Até que, em 1949, o reitor de uma outra universidade o convidou para chefiar o novo departamento de Psiquiatria daquela instituição. No hospital adjacente, uma infinidade de doentes mentais graves.
    A crença psicológica central, até então, era que humanos agem para fugir da dor. Heath, que tinha formação em Psicanálise, acreditava que o prazer poderia ser um motivador ainda maior.
    Heath supôs que teríamos, em nossos cérebros, um centro do prazer. A esquizofrenia seria causada por um distúrbio nesta região. “Os esquizofrênicos funcionam num estado contínuo de medo porque não têm o prazer para neutralizá-lo.”
    Sua ideia, portanto, era encontrar o centro do prazer – em humanos, agora – e conseguir estimulá-lo continuamente.
    Quase ninguém mais, entretanto, acreditava na existência deste centro e, assim, ninguém o procurava no cérebro – e então Heath não sabia nem por onde começar…
    Nos seus primeiros experimentos, convulsões eram frequentes. Infecções eram comuns. Dois dos 10 primeiros pacientes morreram. Um levantou-se da maca gritando para Heath: “Eu vou te matar!”
    Heath não agia contra o interesse dos pacientes: suas cobaias eram voluntárias. Não que elas tivessem muita condição de entender tudo o que estava acontecendo…
    Em 1955, Heath interrompeu seus experimentos com esquizofrênicos – desistiu porque não achou a cura para a doença. Mas continuou a tentar achar a cura de outras.
    Hoje se sabe que a esquizofrenia tem mesmo uma base física. Menos genes envolvidos na comunicação entre neurônios e mais relacionados a células neuroinflamatórias levam a uma leve inflamação crônica. Também há um excesso de dopamina, atuando no sistema de recompensa, porém de maneira mais complexa do que imaginada por Heath.
    Heath, enfim, estava relativamente certo: o prazer está relacionado com a motivação, porém não seria ele a provar isto.

    *

    Enquanto Heath labutava em sua busca pelo centro do prazer, dois jovens cientistas o descobriram.
    James Olds, em 1953, entrava no pós-doutorado. Sem experiência em trabalhar com roedores, foi orientado por Peter Milner.
    Um dia, entretanto, errou o alvo dos eletrodos que colocava no cérebro de uma cobaia.
    O rato, ao acordar, ficava farejando nas proximidades de onde havia recebido o estímulo cerebral. Se fosse retirado do local, voltava para lá.
    Logo os cientistas perceberiam que poderia fazer o rato se afeiçoar por qualquer local – bastava provocar o estímulo quando ele estivesse lá.
    Uma radiografia mostrou que o eletrodo havia ido parar no núcleo accumbens, até então uma estrutura obscura, do tamanho de uma bola de gude, nos humanos, em cada hemisfério cerebral.
    Olds e Milner testaram em outros ratos e viram que, se eles pudessem eles mesmo se estimular, perdiam o interesse por qualquer outra coisa, inclusive sexo e comida, preferindo pressionar freneticamente a alavanca que “ligava” o accumbens. Mesmo tendo água ao seu lado, muitos morriam de sede!
    Heath estava certo: não só havia um centro do prazer no cérebro, como este era mais motivador do que o instinto de sobrevivência.
    Olds e Milner continuaram a mapear a área do prazer e descobriram uma rede, ao longo da linha mediana do cérebro.

    *

    Inspirados por Olds e Milner, muitos realizaram pesquisas em outros animais. Mas Heath foi além: ele agora sabia onde procurar, em humanos…
    E resolveu estudar estes humanos em vários contextos, inclusive sexuais.
    Em um artigo de 1972, por exemplo, descreve voluntários submetidos a testes enquanto assistiam a filmes pornográficos ou mesmo em contato com uma prostituta. Pleasure and brain activity in man
    Heath, embora criativamente genial, era desleixado nos métodos científicos, e por isto boa parte dos seus trabalhos não pode ser replicada e são mera curiosidade – aliás, muitos não poderiam ser replicados nem mesmo se fossem cientificamente bons, já que os Conselhos de Ética arrepiariam ao escutar a ideia…

    *

    Embora a biomassa das bactérias exceda a de todas plantas e animais e nós humanos sejamos apenas “fazendas móveis” para elas, elas têm um comportamento bem simples, automático e previsível. Elas reagem a moléculas do ambiente – indo rumo às “boas” e evitando as inúteis ou prejudiciais.
    As planárias, surgidas há uns 560 milhões de anos, foram uma das primeiras formas de vida dotadas de sistema nervoso.
    A lombriga C. elegans possui apenas 320 neurônios – e utiliza-se da dopamina para orientar-se na busca por alimento.
    Um humano, com um sistema de recompensa desenvolvido, decide que quer comer comida – e não uma bicicleta, pois acha uma coisa mais satisfatória do que outra.
    Na década de 1980, os livros de Psicologia explicavam que a busca por recompensa nos motiva a sobreviver: fugimos da dor, buscando o prazer – até que nos saciamos. Entretanto, havia alguns furos: como explicar viciados que não se saciavam e, além disto, nem mesmo sentiam mais prazer com a droga?

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    “Querer aquilo de que gostamos e gostar do que queremos parecia axiomático. O fato de não ser verdadeiro exigiu quase 30 anos para ser aceito.”
    Em 1986, Kent Berridge (1957 – ) era um jovem professor universitário cujo talento era interpretar expressões faciais de ratos! Chegou a escrever uma monografia de 25 páginas sobre o assunto.
    Então recebeu um convite de Roy Wise, já conhecido por suas descobertas do papel da dopamina no sistema de recompensa – suas descobertas fizeram os jornais chamar o neurotransmissor de “molécula do prazer”.
    Wise realizaria o seguinte experimento. Ratos adoram água com áçucar. Wise daria a eles uma substância que bloqueia a dopamina. Se a dopamina fosse mesmo a molécula do prazer, os ratos não deveria mais demonstrar “alegria” ao encontrar o líquido. Berridge interpretaria o “grau de felicidade” no rosto das cobaias.
    Mas os ratos pareceram tão alegres após o bloqueador de dopamina quanto antes. O resultado decepcionou Wise, que repetiu o experimento. Novamente, nada aconteceu. Wise desistiu.
    Mas Berridge continuou. E usou um bloqueador muito mais potente, que deveria “zerar” a dopamina dos ratos.
    Os ratos continuaram a beber o líquido e demonstrar prazer… Porém… apenas se a água com açúcar fosse dada a eles – caso contrário, eles não iam em direção a ela!
    Na verdade, era mais grave: se eles não fossem alimentados à força, morreriam de fome.
    A conclusão era óbvia: a ausência da dopamina não acabou com o prazer, mas com a motivação para buscar este prazer.
    Isto contrariava não apenas o consenso científico, mas até mesmo a sabedoria convencional: como algo que gostamos não nos atrairia?
    Berridge teve um insight fundamental: “gostar” e “querer” são duas coisas distintas. Não necessariamente iremos querer o que gostamos. Ou gostar do que queremos.
    Os dois sistemas, embora interconectados, no nosso sistema de recompensa, são distintos.
    Mais de 100 neurotransmissores já foram identificados no cérebro humano.
    Berridge raciocinou que a dopamina estava ligada ao querer. Assim, a dopamina não seria a “molécula do prazer”, e sim a “do desejo”.
    Seria possível induzir os ratos a querer sem gostar? Sim, usando corrente elétrica, ele encontrou a área do desejo nos ratos e os induziu a beber um líquido amargo. Suas carinhas mostravam que eles estavam odiando a bebida…
    Berridge descobriria, ainda, que o gostar se utiliza de opióides e endocanabinóides – heroína e maconha naturais… Quando bloqueou estes neurotransmissores, os ratos iam atrás da água adocicada, mas não faziam “aquela” cara de prazer…
    O cientista passou a procurar estas dissociações querer/gostar no comportamento humano. Os fumantes são um bom exemplo – eles não sentem mais a nicotina.
    O foco da propaganda é estimular o desejo, não o prazer. E às vezes, para conseguir isto, basta expor o produto!
    Em um estudo com pessoas que queriam emagrecer, seus cérebros foram analisados. As que mostravam maior reação na área do querer quando viam fotos de alimentos super calóricos, tiveram mais dificuldade para perder peso.
    Psicólogos observariam que às vezes mais queremos do que gostamos do que estamos buscando.
    Um estudo demonstrou isto: 61 universitários homens tiveram um encontro com uma mulher, bonita, que fazia parte da equipe de pesquisadores. Com alguns, ela foi bem simpática, acessível, “fácil”. Com outros, reservada, “difícil”. Os voluntários que conversaram com a acessível gostaram mais dela do que os outros. Entretanto, o grupo que conversou com a versão “difícil” mostrou muito mais interesse em vê-la novamente!
    O estudo lembra o conselho de Sócrates a uma cortesã: que ela atrairia mais “amigos” se contivesse seus afetos até que os homens se mostrassem “famintos” de desejo…

    *

    O trabalho de Berridge se estendeu por anos, mapeando o sistema do gostar. Descobriu que ele é uma rede de nós de 1,3 cm espalhados no sistema de recompensa, incluindo o accumbens, mas também pálido ventral (que foi descoberto há não muito tempo) e córtex órbito-frontal. O cientista chamou os nós de “pontos quentes hedônicos”.
    O querer é muito mais concentrado, no accumbens. Quando estamos impelidos a comer, transar, dançar, exercitar-nos etc., o accumbens está “on fire”. “Só depois [grifo meu] que surge ali o desejo passa para o córtex órbito-frontal, que cria nossa experiência consciente deste desejo.” (?!)
    O querer é mais fundamental e está presente em todos os animais. Nos animais “mais antigos”, contudo, não há o gostar. Eles passam a vida “sem nunca ter a experiência de gostar do que precisam”. (!!)
    Nos humanos, o querer é muito mais complexo. Ao vermos uma comida suculenta, faremos considerações nutricionais e estéticas. E é possível, com algumas práticas, fortalecer ainda mais a ponderação sobre o querer.
    Berridge descobriria, ainda, que o accumbens não controla apenas o querer, mas também seu oposto: o desejo de evitar ou fugir. Uma extremidade da estrutura é voltada a querer, a outra a não querer, com um gradiente entre uma ponta e outra.
    Um ambiente estressante (ex.: música muito alta) aumenta a expressão da extremidade da aversão. Um ambiente aconchegante faz o contrário.
    As conclusões de Berridge não foram aceitas nem por Roy Wise e nem por ninguém mais, inicialmente. Ele persistiu e continuou trabalhando por vários anos solitariamente e quase sem financiamento – um excelente exemplo de querer! Foi só a partir da primeira metade da década de 2010 que o jogo virou e seus trabalhos são citados milhares de vezes anualmente.

    *

    Em situações extremas, nós humanos reagimos de forma extrema. Isto se torna um problema social, com tantas vítimas de um sistema de recompensa desequilibrado – enquanto algumas pessoas ganham (muito) dinheiro para provocar isto!
    Os alimentos hiper-processados estão aí para nos agradar, mas nunca saciar. Paul Johnson e Paul Kenny, neurocientistas, alimentaram ratos alimentos “apetitosos” por 30 dias – não apenas engordaram muito, como foram observadas mudanças patológicas em seus cérebros.
    Induzir o consumo de junk food se mostrou, nos humanos, historicamente assustadoramente fácil.
    Mas não é apenas isto. Tanto que a Sociedade Americana de Medicina da Adição redefiniu vício como “uma doença primária de recompensa do cérebro”. Assim podemos discutir agora vício em videogame, sexo etc.
    Atividades “viciantes” aumentam drasticamente a quantidade de dopamina liberada no accumbens. Os circuitos do querer ficam superestimulados. Cada episódio aumenta o efeito – processo chamado de “sensibilização. Há alterações físicas duradouras ou mesmo permanentes.
    Por outro lado, pode haver um efeito oposto no gostar….
    A susceptibilidade individual ao vício parece depender de genes relacionados aos receptores de dopamina no sistema do querer.
    A quantidade de dependentes de mil coisas atualmente não é um erro da natureza: é consequência do nosso meio atual. “Raramente se encontra um vício em ambientes naturais.”
    Nikolaas Tinbergen, que ganho um Prêmio Nobel, chama de “estímulos supranormais” os que excitam além do previsível um sistema.
    Um macho de peixe chamado esgana-gatas ataca outros que invadam sem território. Eles têm a barriga vermelha. Tibergnen observou que eles atacam qualquer objeto com a cor vermelha – e ficavam “nervosos” até com a passagem de um carro vermelho pela janela. Ok, é uma reação instintiva. Entretanto, se um objeto fosse pintado com um vermelho mais intenso e colocado colocado com outro macho no aquário, eles atacariam o objeto!
    Uma mamãe-ganso que rola de volta um ovo que cai do ninho irá rolar uma bola de vôlei, preferencialmente.
    O comportamento animal é facilmente “sequestrado, observou Tinbergen, por estímulos supranormais.
    A indústria do tabaco, fabricantes de medicamentos opióides etc. sabem bem disto. Boa parte das drogas viciantes vêm de plantas que não viciam. A folha de coca não tem o mesmo potencial. Batatas fermentadas não têm o poder da vodka.
    A obesidade sempre foi rara, antes dos alimentos hiperpalatáveis. Fomos sendo cozinhados como o sapo na panela, enquanto os profissionais chamam isto de “otimização” dos alimentos…
    São 300 mil mortes por obesidade por ano, nos Estados Unidos. Resta a nós a consciência da manipulação e a ação contra ela…